terça-feira, 30 de outubro de 2012

A viagem interrompida pela roleta de energia renovável.

A decisão foi tomada rapidamente. Os seis camaradas sonhavam com a viagem há muito tempo. Era só juntar a grana, que não era pouca, organizar a tralha e ir pro aeroporto. Não passavam de uns jecas. Um já havia saído do país, mas nada que se possa comparar a uma viagem para Las Vegas. Todos vagabundos que de alguma forma ganharam certa grana trabalhando mal e porcamente, gastando com cerveja, conhaque, vinho e Derby Azul.

Pegaram o avião em Curitiba com uma puta cara de ressaca para só pisarem em terra novamente na escala em Houston. Nesse aeroporto, comeram, compraram Camel usando seus contados dólares. Tinham que fazer isso. Consideravam esse ato como um ritual de amizade. Fumaram, passearam pelo aeroporto, decepcionaram-se quando perceberam que era verdade a história que a brasileira é a mulher mais bonita do mundo.

No avião:

-O, meu, vou deitar meu banco, beleza?
-Ah vá se foder.

-O, meu, só faltou um basi.
-Pior que seria massa. Chegando lá é a primeira coisa que a gente vai fazer, certeza. E tomar um conhaque.

-O, meu, imagina a gente lá.
-Não tem como, cara. Nós somos uns puta desgraçados de sortudos.

-O, meu, imagina aquelas tiazona de tumblr deitada na mesa mostrando os peitos.
-Cara, pare de viajar, e pega igual homem esse Doritos porque você parece uma baitola.

Desceram em Las Vegas.

-Cara, L.A é muito linda!
-Puta que pariu, você é burro pra caralho...
- L.V...L.V.

Pediram um táxi para ir para o hotel mais mais-ou-menos da cidade. Chegaram causando no hotel. Brasileiro é foda, ainda mais os bêbados. Só gritaria, chororô de felicidade, risadarada e ninguém aí pra nada. No taxi foi foda falar inglês, ainda estavam sóbrios, mas no hotel... Esqueci de comentar que havia um bar ao lado do hotel. No taxi:

-It's here guys. It cost ten bucks.
-Eu pago.
-Vamos dividir.
-Relaxe, depois você paga a beer.
-Beleza.
-É...é...It's here.
-AEEEEE ELE FALOU INGLÊS!

-Meu, não acredito, tem um bar do lado do nosso hotel.
-Gooool do curintiá.
-Puta merda, pobre é sortudo pra caralho.
-Hahahahahaha

No check-in, todos parlavam o inglês de bêbado se achando, mas não se pode negar que a bebida ajudou.
Entraram no quarto, jogaram as coisas nos beliches.

-Where is the cigarette?
-Fale português aqui, porra.
-Hahahahah
-Cadê o careto?
-Tá.

-Vamos pra onde, putada?
-Tem piscina aqui?
-Deve ter, mano. Estamos nos states.
-Eu prefiro ir pra um cassino logo. Quero me viciar nesses games loucos daqui e não voltar mais.
-Eu também.
-Ah, então vamos.

É claro que o cassino também era o mais mais-ou-menos. Mas era um cassino em L.A, digo L.V. Quando eles chegaram, o pessoal da casa pensou que se tratava de um documentário ou uma refilmagem da cena de Fear and Loathing in Las Vegas, mas não, não era. Eles estavam realmente bêbados.

-I'LL PLAY ROLETA ALL NIGHT.
-POUPE-ME DO SEU INGLÊS BARATO.
-SE ISSO AQUI FOSSE GOVERNADO PELO ROMNEY SERIA MUITO MAIS TESÃO.
-E NÓS NÃO ESTARÍAMOS AQUI.
-É.
-AONDE É O BAR?
-AQUI.

Beberam bastante. Como era um cassino vagabundo, barato, só passava por lá gente da pior laia. Viciados em qualquer coisa, bêbados, velhos broxas, psicólogos e estudantes gringos.

-O, CADÊ AS STRIPPERS?
-NÃO TEM STRIPPER AQUI, CARA.
-A É?
-É.
-VAMO JOGA?
-COMO QUE A GENTE VAI FAZER?
-DEIXA COMIGO.

...

-WE WANT TO PLAY.
-Ok guys. Take your sit and... Please, watch out the cigarette burning the table... Oh lord!
-SORRY MAAAAN...
-COMO SE JOGA ISSO?
-SÓ ESCOLHE O NÚMERO E TORCE PRA CAIR NELE.
-BELEZA. QUERO O 13.
-QUERO O 45.
-24 HEHEHEHEHEHEHE
-...
-...
-...
-22
-12
-THIRTY THREE.
-So, let's play boys! Who will be the winner?

E o dealer rodou a roleta. Todos arrepiaram-se. Quem iria vencer? Eles se consideravam um time. Qualquer um que vencesse significaria vitória para todos. Mas a roleta ainda estava girando, os nervos à flor da pele, ela não parava e nada acontecia...

-PORRA, MAS QUE MERDA ISSO.
-É. HEY GARÇOM, BRING A BEER
-TWO BEERS.

E o tédio começou a tomar conta deles. A roleta não parava. Seria um sinal?

-THREE BEERS.
-HEY DEALER! WILL THIS SHIT STOP SOMEDAY?
-MAAAAAYBE GUYS... MAAYBE.

Ela nunca mais parou e eles, bem, eles ficaram lá, bebendo e fumando.





terça-feira, 16 de outubro de 2012

Mendigo, mendiga...

Eram 3:48 da madrugada. Sexta-feira. As ruas estavam prontas para a ressaca de sábado, todas sujas com as histórias bêbadas do povo que sai baratinar a rotina. Todos têm esse direito. O abandono do Mercado Municipal se torna o covil perfeito para o nascimento das mais desregradas e espantosas cenas. Depois do baque do crack, Santinha só pensava em fumar mais e transar.

Vamo ali no canto.
Vamo.

Quatro meses depois, Santinha já tinha dificuldades para caminhar por Ponta Grossa. Pelo menos não se preocuparia mais com menstruação. Odiava sair sangrando pelas ruas. A barriga crescia e a necessidade de alimentar mais um ser começava a dar o ar da graça. O sopão da casa da irmã Scheila passou a ser indispensável. Santinha passava lá todo dia lá pelas nove da manhã, de ressaca ou não. A esquina ficava cheia de mendigos, cada um com a sua história e a sua barriga vazia. Muitas gaiotas.

Depois de comer , Santinha saía perambulando pela cidade. Cada dia com uma pessoa diferente. Fumavam crack, mendigavam, andavam pelo centro incomodando as campanhas políticas.

Na maior parte do dia, Santinha era alheia à barriga que crescia. Pensava só na barriga vazia. Era óbvio que a barriga incomodaria logo, não por estar vazia, justamente o contrário. Mas mãe, ainda mais de primeira viagem, tende a preocupar-se pelo menos um pouco com a vida do feto. Com o quinto mês chegando, Santinha realmente se deu conta de que já era mãe.

Pensava seriamente em parar de fumar crack, mas só pensava. Pensava em como nasceria o filho, nos problemas posteriores, mas os rápidos intervalos em que não tinha a droga espantavam essas preocupações, deixando a cabeça com outras. Na praça deve ter algum moleque vendendo.

Saiu pedindo dinheiro, e em menos de uma hora conseguiu o necessário. Escondeu-se e fumou, sozinha. O cachimbo havia ficado ridículo. Como havia pouco tempo que fumava,  mal sabia fazer seu próprio cachimbo. Mas deu certo. E os efeitos da droga vieram muito fortes. Paranoias dantescas, principalmente quando se dava conta de que já era mãe. Pensava seriamente em aborto para poupar a criança da vida sofrida que vinha a galope, sem escapatória. Se perguntava se nasceria menino ou menina. Se fosse menino teria o nome de Jackson, se o contrário, Elis. Se menino, ela queria que fosse genioso. Um mendigo que briga mesmo sem cachaça. Se menina, que fosse bonitinha a ponto de ser disputada a tapa pelos outros mendigos. Não importava. Fosse o que fosse, seria macho. Afinal, mendigos são mendigos. Para os outros, até mendigas são mendigos.

Chegou o sétimo mês. Santinha já estava enorme. Precisava de mais de um papelão pra dormir. Um boa-alma lhe deu um cobertor de casal. Uma boa-alma compadeceu-se e deu-lhe uma touca. Itens indispensáveis no inverno das ruas pontagrossenses. A barriga a obrigava a pensar mais na criança. Duas bocas para alimentar, mais papelões para dormir, ensinar a mendigar, lidar com os cães da rua, intolerância dos que têm dinheiro. Considerou pela enésima vez a ideia do aborto. O desejo de criar um mendigo não nasce em ninguém, mas com sete meses de vida, eles já brigam por esta, mesmo que na cabeça da mãe.

Por causa da barriga e das dificuldades que esta lhe impunha, ficava só pelo centro, na praça e calçadão. Dormia por ali, comia por ali, reclamava por ali, se drogava por ali. Ela ja contava dez meses de gravidez, mas na verdade ainda era o oitavo. A criança queria sair. E na noite mais fria do ano, ela manifestou sua vontade. Rompeu o que tinha que romper justo quando Santinha estava fumando. A correria dos dois mendigos que estavam juntos foi enorme. De uma hora para a outra, transformaram-se em salvadores, amigos e médicos. Ou pelo menos tentaram. Um largou a pinga e correu para a farmácia pedir ajuda. O outro ficou ali, meio atônito, mas quando a criança saiu, tomou um gole da pinga e a segurou .

Corta isso aí duma vez porra.
Eu não. Vai que mata.
Mata nada.

Pegou sua lâmina velha e cortou.

Me da aqui.
É um piá.
Um piazinho!
E vai faze o que com ele?
Faze o que... Vo cria né.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Cruzada de fé

Talarico era um cara comum. Jovenzinho de uns catorze, bem sucedido entre os amigos, de família tradicional e conservadora. Tinha um tio meio maluco que sumia da sua vida de vez em quando. Uma vez Talarico vestiu a camisa de Jesus Cristo no estilo presbiteriano, influenciado pelo seu tio estranho. Quando digo que Talarico vestiu a camisa de Jesus Cristo no estilo presbiteriano, quero dizer que Talarico virou um crentão sem graça, daqueles que ia aos cultos todo domingo, lia a bíblia e tentava converter seus pais.

Antes de tornar-se um ser insosso, Talarico já se perguntava sobre a existência de algum deus, e corria atrás  da perca da virgindade. Era namorador, e essa era uma das maiores identidades dele. Era coisa de linha genética. Deus não muda uma coisa dessas, e mesmo participando da comunhão dos irmãos, ficava de olho nas irmãzinhas. Aliava o seu bom gosto pelas fêmeas, junto às exortações bíblicas sobre relacionamentos santos somente heterossexuais.

Como era um cara "ajeitado", de autoestima pendente ao narcisismo, acabava flertando regularmente com algumas garotas de bíblias embaixo do braço. Essas eram aquelas que uniam a santidade à beleza secular.

Não demorou muito para pescar a que era considerada o maior peixe da congregação, e logo saíu exibindo a conquista pela igreja, causando inveja aos fiéis.

Talarico gostava um pouco dela no começo, mas com o passar do tempo foi se tornando mais servo do senhor, e ela o acompanhava nessa jihad egocêntrica, o que fazia com que, aparentemente, os dois se entregassem mais ao relacionamento, até aí sempre tentando ser santo, diga-se de passagem. E assim foi. As famílias se conheceram, alianças foram trocadas, juras de amor bíblico (sempre eterno e incorruptível) foram ditas, até que o namoro começou a ficar com ares de namoro sério, não pelas doutrinas cristãs, mas pela troca de palavras e sentimentos.

A mãe da namoradinha de Talarico começou a preveni-lo sobre uma má notícia que vinha a cavalo. Coisa de crente mesmo. Premonição, visão, encosto, revelação, o diabo a quatro. Talarico permanecia firme na rocha do senhor. Até que começou a desconfiar. Parecia que as duas famílias guardavam um segredo colossal. O clima era cada vez mais tenso a cada encontro que reunia os familiares com os namorados. O segredo foi revelado pela sogra, sempre participativa na intimidade do casalzinho.

Era caso de doença. Sua parceira estava doente, e ele quase ficou. A doença era uma leucemia, cuja gravidade não é necessária ser introduzida ao texto. Talarico desfaleceu em lágrimas, orava por horas a fio pedindo ao seu novo fiel deus para que intervisse na enfermidade. O clima ficou péssimo, mas não por muito tempo, pois a cura era certa segundo a Bíblia, e Talarico confiava nela cegamente. Segundo ela, Deus era onipotente. E o tempo foi passando, Talarico orando, as famílias se compadecendo da situação, a assembléia toda já sabendo e o pastor fazendo cruzadas de fé pela cura.

A menina não demonstrava sinais de melhora, mas também não piorava. Estava na mesma situação de antes. A doença não avançava com o tempo, o que era algo bom, mas começou a dar espaço para alguma desconfiança. Talarico não desconfiava, nem da sua Bíblia e nem da mulher que tratava por futura esposa. Começou a ama-la perdidamente. Enlouqueceu por elas, doença e namorada.

Bastante tempo passou desde que a notícia da doença foi compartilhada com todos. A família de Talarico já era descrente da legitimidade da enfermidade. Aí deu-se o início de uma guerra. Talarico virou as costas para a própria família, que tentava convence-lo da falsidade do diagnóstico. A coisa ficou feia, o afastou da família e o aproximou da sogra que, com todas as forças tentava mostrar o quanto a filha estava sofrendo, se acabando numa depressão que ninguém percebia. Ele, abestalhado com a cena abatedora, concordava com tudo isso de olhos e ouvidos tampados.

As ditas cujas conviviam muito bem, menina, doença e estória. E isso foi sendo jogado na cara dele pela família, cada vez com mais frequencia.

A situação foi ficando insustentável. A família de Talarico achou que era necessário um ultimato. Se estava doente, que fossem revelados os diagnósticos médicos. Chega de falácias, chega de fé divina. O menino que só enxergava a medicina divina como um meio de provar a doença, foi desafiado pela medicina do homem.
Até boa parte da igreja compartilhou dessa ideia, vejam só, que fé inabalável. E Talarico aceitou o desafio. Tinha o seu deus como fiel escudo contra o que chamava de tramas do satanás. Quis ver o diagnóstico terreno para poder esfrega-lo junto com a bíblia na cara da própria família.

Meu amor, vamos mostrar pra eles, mostre o resultado do exame.
Ah, não precisamos disso. Você acredita em mim, e acredita em Deus, sabe que ele vai me curar.
É claro que eu sei, mas vai ser uma prova do Senhor de que ele pode curar você dessa Leucemia.
Eu e minha família sabemos da doença que eu tenho. Você também sabe, Deus sabe, e vai me curar.
Vai sim, mas eu também quero ver esse papel.
Você está duvidando de mim.
Não, não estou, mas preciso ver isso e mostrar isso pra minha família. Eles estão me cobrando, e vai ser bom provar pra eles.
Vou falar com a minha mãe, ver se ela ainda tem o papel do exame.

Diz-se, até hoje, que ela perdeu o papel. A igreja exigiu o aparecimento deste, coisa que aconteceu, e o resultado já era visto. Eles terminaram o namoro, a igreja presenciou um ato novelesco de dissimulação e a cruzada de fé acabou.