quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Charles, que não sabia lidar com decisões contrárias.

Acordou cedo, de ressaca, mas convicto como nunca. Podemos confiar e se entregar numa convicção de ressaca? Não importa, Charles estava disposto a botar um ponto final na sua angústia. Foi dormir mordendo vingança, acordou mastigando vingança. Não iria digerir até que desse um fim em tudo aquilo.
Charles sabia que as armas mais apropriadas para efetuar uma vingança eram as brancas. Não que lhe faltassem em casa, mas assassinar a pessoa que mais amava no mundo, apenas era a ação mais rápida e impensada que deveria praticar, e o assassinato com uma dessas armas é para se apreciar, torturar, e degustar a vítima. É arte.

Charles preferiu a Glock. Arma simples que executaria rapidamente qualquer pessoa. Nada de sentimentos a mais. Nada de pensamentos a mais. Convicção. Era disparar, e a despedida ficaria para depois, em orações.

Ele saiu de casa, como sempre imponente, mas imponente como nunca. O sentimento de decisão convicta, em um homem elegante, pode gerar um Adônis nas calçadas de hoje. Com a arma na cintura, entrou no seu carro, deu a partida e seguiu ao seu destino. Não o destino geográfico, o outro, o da vida, o cósmico, o karma.

Estacionou o carro na esquina do edifício em que Carla residia. Ficava em uma periferia da cidade, com gente feia, sujeira e homens mal-encarados. Saiu do carro, andou até a frente do prédio, parou. Acendeu um cigarro. Ele sabia que ela estaria lá. Conhecia os seus hábitos há dois anos. Ela conhecia os seus pelo mesmo período. Nunca em sua vida havia compartilhado tantos sentimentos, vontades e palavras tão profundamente com uma mulher. Nunca havia tocado um corpo como tocava o dela. E ele sentia, sinceramente, que era recíproco. Acreditava que conhecia todos os hábitos, pensamentos e vontades dela. Até o dia em que descobriu que não sabia de tudo, e tomou o maior porre da vida para aplacar a dor.

Foi nesse dia que achou que um ser humano merecia perder a vida. E colocou sua vontade como ação no dia seguinte.

Entrou no prédio. Não encontrou barreiras. Nem porteiros, nem vigias, nem moradores. Subiu o elevador com as pernas tremendo. A primeira lágrima desceu na sua face logo que chegou ao oitavo andar. A porta abriu e ele, decidido, seguiu em frente sem haver se questionado uma só vez.

Tocou a campainha do 82. Tocou de novo - essa foi a primeira vez em que bambeou seus pensamentos e, por um triz, não voltou atrás - e começou a chorar compulsivamente. A porta abriu e Charles não esperou cumprimentos...

Entrou e sentou no sofá. Carla estava de camisola. Linda como sempre, como nunca mais ficaria. Assustou-se com o choro de Charles.

- Carla, você não vai entender, eu também não entendi, então, se... se realmente você não tem mais dúvidas, é melhor botar um fim nas minhas. Sinceramente achei que estava fazendo tudo o que era possível, pois realmente amava você como nunca achei que fosse amar criatura alguma na terra, mas se você pensa o contrário...

Charles levantou, tirou a Glock da cintura, Carla gritou que se acalmasse, mas não havia outro jeito. Ele meteu uma bala no seu próprio coração e morreu sem entender o que havia acontecido para ela pedir um tempo.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O Passado, Alan Pauls.

É um livro um pouco complicado, até mesmo pelo estilo ortográfico do autor, e tem um enredo fantástico e corriqueiro ao mesmo tempo. Quando comecei a ler, não vi muito sentido no título do livro, porém com o andamento da leitura é fácil perceber.

A história é de um cara (Rímini) e suas muitas paixões - ou devo dizer amores? - que parecem ter sido pautadas pelas fases da sua vida, mas que em momento algum deixou de receber a influência da sua primeira namorada (Sofía). Resquícios dessa primeira paixão, que foi avassaladora e durou mais de uma década, ficaram encrustados na personalidade e estilos de vida do personagem principal, desde a sua profissão, até sua maneira de responder. Rímini terminou com Sofía sem grandes motivos, o que a revoltou e também seus círculos familiares e de amizades. O relacionamento deles era tão sólido e admirado que chegava a ser tido como patrimônio da humanidade por quem os conhecia. Sofía nunca entendeu o rompimento, e Rímini também nunca conseguiu explicar. Envolto nesses fantasmas do passado, a história se passa dando a entender que Sofía ficou estagnada nas lembranças e não queria abrir mão de tudo o que os dois construíram juntos, e Rímini, por sua vez, também não conseguiu desvencilhar-se completamente - Sofía volta e meia o atormenta exigindo explicações e que ele ao menos separasse as milhares de fotos que tiraram juntos. Com os hábitos mais desregrados, descritos maravilhosamente pelo autor, Rímini acabou mudando de vida na tentativa de obter alguma amnésia mágica que varreria a vida que levou com Sofía da sua mente. Ele simplesmente se deixava levar, o que com o passar do tempo se torna desesperador para o leitor, e esses hábitos heterodoxos e histórias paralelas em que se mete dão um tempero sensacional ao livro.

Pensando assim, parece só mais um melodrama comum, mas de forma alguma é. Cocaína, masturbação compulsiva, desmaios, porres, homossexualismo, história da arte, aulas de tênis, rehab. A obra contém tudo isso e reviravoltas lindas. Alan Pauls foi tão genial ao criar uma espécie de livro à parte, dentro de um capítulo, só para explicar a vida, o estilo e as histórias das obras do pintor Riltse - que desde o início da relação, foi idolatrado pelo casal e fez parte da sua história - que a reação ao terminar esse capítulo, é correr para o google e pesquisar sobre o pintor, que não existe.

O estilo do autor é intrigante, pois lembra um pouco Saramago colocando frases dentro de frases fazendo com que as orações pareçam não acabar nunca. Isso torna a leitura um pouco cansativa em certos momentos, mas na verdade o autor está apenas explicando a gigantesca e absurda gama de sentimentos dos seus personagens de uma maneira extremamente meticulosa e realística. Nunca havia lido algo parecido. É aí que você sente o tesão pelo livro, que foi absurdamente bem escrito.

O livro é da Cosacnaify. Leitura obrigatória para junkies que se perdem fácil em relacionamentos.